quinta-feira, 24 de abril de 2014

Leitura: solidão, comunhão e autoria

Por Gladir Cabral

NÃO sei muito bem quando começou, mas suspeito que tenha sido ao ouvir as primeiras histórias da Bíblia no quarto de dormir, nas últimas horas da noite, ou quem sabe nas primeiras idas à Escola Dominical. O fato é que desde muito cedo criei gosto pela leitura. Primeiro, as leituras feitas por minha mãe, por meu avô, gente simples que me anunciava um mundo a ser conhecido e desvendado. Depois, as leituras feitas na escola e em casa, as memórias de um sargento de milícia, os livros de história, Tiradentes e a corda amarrada ao pescoço, Jesus e suas histórias deliciosamente repetidas em quatro evangelhos que coloriram minha fé e minha imaginação com força indelével superior ao tecnicolor. Mais tarde, na adolescência e juventude encontrei amigos para os quais a leitura era alimento para a mente e a alma, e com eles descobri Edgar Allan Poe e suas histórias de mistério, Dostoiévski e as suas recordações da casa dos mortos, e a lista não tem fim.


A leitura tem um elemento que sempre me fascinou: o silêncio, a solitude, bem mais que a solidão. Ela exige um certo recolhimento, um afastar-se do burburinho, da algazarra, um ir ao encontro do outro no frágil espaço da quietude. Por isso mesmo, ler é estar muito próximo de si mesmo. Há que se ter certa confiança, certa calma de estar na companhia de si mesmo. Qualquer sinal de ansiedade, de pressa, e a leitura se perde na fumaça da distração. Plim!! E lá se foi a voz que me falava. O que dizia mesmo? Espera aí, tenho de voltar ao parágrafo anterior. Com um pouco de calma, o diálogo recomeça. O que se ouve é a voz do outro, a voz dos personagens da história, do autor. Portanto, a solidão é só aparente. É muito agitado e intenso o momento da leitura.


Por outro lado, a leitura é também um ato coletivo. Intelectuais falam de comunidade de leitores, comunidades interpretativas (Stanley Fish), mostrando que a relação texto-leitor á para lá de rica e complexa, como sugerem Hans Robert Jauss (1994) e Wolfgang Iser (1996). Desse modo, aquele que não lê não se afasta do mundo, mas interage com ele e se posiciona em relação a ele. Em uma palestra proferida no primeiro Congresso Brasileiro de Leitura no início dos anos 1980 em Campinas (SP), Paulo Freire relata suas primeiras experiências com a leitura, seu aprendizado lento e orgânico. Ali ele enfatiza o caráter social da leitura. Ninguém lê sozinho, mas em diálogo com os outros leitores e com a realidade. Em dado momento, Freire faz sua clássica afirmação de que “a leitura de mundo precede a leitura da palavra”. Mais do que ato solitário, a leitura é manifesto solidário, ato comunitário, também crítico, mas sobretudo sinal de comunhão.


Por fim, a leitura é também ato de criação de significado, portanto de coautoria. Quem lê, colabora com o texto, atualiza-o, de certa forma encarna-o. De certa forma, posso dizer que ler é também escrever, pois é reagir à palavra escrita, é oferecer um texto novo ao texto lido. O teórico russo Mikhail Bakhtin assevera que toda palavra é resposta ou interpelação, todo texto é parte de um diálogo, é um fenômeno histórico e social, coletivo e ao mesmo tempo interior. Ao mesmo tempo que o texto nos constrói, vamos, por meio da leitura, construindo novos textos a partir de nossa tênue voz e de tantas vozes que nos atravessam. Umberto Eco fala do leitor como atualizador do texto, sempre complementando suas incompletudes. Ler é fazer-se autor.


Quem lê precisa de silêncio. Quem lê precisa de comunhão. Quem lê se torna escritor.



fonte: http://ultimato.com.br/sites/gladircabral/2014/04/22/leitura-solidao-comunhao-e-autoria

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